A comédia e o direito ao teatro

A edição 2023 do Janeiro Brasileiro da Comédia dá o que pensar, em várias frentes. A começar pela ampliação do […]

2 de fevereiro de 2023

A edição 2023 do Janeiro Brasileiro da Comédia dá o que pensar, em várias frentes. A começar pela ampliação do que chamamos “gênero cômico”, que o festival ajuda a visualizar. Mas não apenas isso. Podemos pensar também, a partir do evento, sobre o papel da arte na política pública e sobre o direito dos rio-pretenses, dos brasileiros e brasileiras, ao riso e ao teatro.
Em um momento difícil na vida do país, do qual saímos fraturados após violento processo político, o festival nos mostrou – nas ruas, praças e salas – que o riso cura. Mostrou que a mordacidade ou a poesia da cena cômica são capazes de nos fazer pensar criticamente sobre a vida que vivemos ao mesmo tempo em que nos re-úne e nos abastece de uma energia que só pode nascer da experiência coletiva, compartilhada. Não é pouco.

No Festival isto foi visto e vivido em alta potência, salvo engano como resultado de dois fatores que andaram de mãos dadas – a boa qualidade dos espetáculos e o plano de descentralização, experimentado transversalmente: primeiro na escolha das montagens, com a disposição da Comissão de Seleção em ter representações de todo os cantos do país. Neste aspecto, sabemos como é difícil para as comissões cumprir suas intenções iniciais. São muitos os fatores que determinam as escolhas. Ainda assim, fica o débito com o Norte do Brasil. Diante de uma seleção preocupada com a representatividade é notável que não haja nenhuma cena do Norte. De todo modo, mesmo com esta lacuna a representação regional foi acima da média.

A isto junta-se o segundo fator: a inspiradora decisão da Secretaria de Cultura, de fazer com que os trabalhos fossem apresentados em todas as regiões da cidade, o que incluiu os distritos mais periféricos. Ainda quanto a isso, foi bonito ver o Secretário de Cultura, Pedro Ganga, e o Coordenador do festival, Jorge Vermelho, presentes e empenhados no dia a dia do evento. Não só como autoridades que acompanham tudo de perto mas também como participantes das discussões sobre as obras. É algo inusual e significativo.

Programação
A programação de espetáculos teve alguns acentos evidentes. O mais apontado deles foi sem dúvida a palhaçaria feita por mulheres. Elas estiveram em criações onde as questões de gênero apareceram pautadas no primeiro plano, como em Brisa´s Beach (Janaina Morse – Belo Horizonte, MG), Que festa é essa, criatura? (Daniele Pezenti – Londrina, PR), Balões (Ana Carolina Sawuen – Rio de Janeiro, RJ), Tunina entre bananas e abacaxis (Julia Campos – São Paulo, SP). E também nas cenas em que os números do circo foram vocalizados através de atuações novas, como em Sortilégio (Laura Barbeiro – São José do Rio Preto, SP) e Entrevista de emprego (Ana Vaz – Brasília, DF). São montagens nas quais tradição e invenção intercalam-se a partir do olhar da artista mulher.
As cenas curtas apresentadas no Cabaret do Riso/Recinto de Exposições/ Caboclão, remeteram ao teatro de variedades e à tradição da cena aberta. O formato é muito bom para agregar o público disperso que frequenta o Ponto de Encontro do festival. Além dos já citados, ali rimos um bocado sobretudo com a intervenção de artistas mais jovens como Thiago Sales (Americana, SP) e sua Banda do Jerônimo, a Fumaça, de Daniel Satin (Santo André, SP), a dupla Marcelo Paixão e Priscila Freire e as suas Fachianas in Concert (Franco da Rocha, SP). Também com o Malogro de André Sabatini e Vitor Poltronieri (Campinas, SP). Pedro Caroca trouxe de Brasília o seu Violinista Mosca Morta, e o recifense Carlos Amorim apresentou o humor de feira em Os causos da Zefinha Parideira. Por fim, vimos o trabalho impagável de um mestre veterano, Abel Saavedra, que representou O Maestro (Campinas, SP), na cena talvez mais participativa e uma das mais engraçadas do festival.

A Mostra abriu bom espaço para experiências cênicas que alargam nossa percepção sobre o que seja o cômico. Aqui, surpreendeu a mistura de rito, lirismo e preocupação social do espetáculo Provisoriamente não cantaremos o amor (Traço Cia. – Florianópolis, SC). Na linha de um teatro que se apropria da figura do palhaço para apresentar uma discussão de fundo existencial, Pontos de vista de um palhaço (com Daniel Warren, de São Paulo, SP) trouxe bom rendimento dramatúrgico e de atuação. Nas bases de uma experimentação mais frontalmente política, A mulher monstro (da S.E.M Cia. de teatro – Natal, RN) personificou, a partir do repertório drag, a cultura do ódio no Brasil atual. E a peça-filme-performance Tudo que você precisa é amor, de Felícia de Castro (Salvador, BA) atualizou os arquétipos cômicos, usados a favor da crítica social, trazendo uma espécie de mitologia das mulheres. Todos estes são teatros que expandem o campo da comédia em chave experimental, a ponto de por vezes quase tocar o seu oposto, em uma dialética que vitaliza e desafia o gênero na abertura de novos caminhos. Isto recupera a ideia de festival não só como recorte da produção cênica mas também como laboratório de linguagens.

Mais próximos da tradição circense e popular foram os ótimos A fabulosa tenda dos charlatães, do Grupo Desembargadores do Furgão (São Paulo, SP), que mistura pesquisa de máscaras asiáticas com tipos históricos da comédia. E ainda os ótimos espetáculos Maquinista, do Pavilhão da Magnólia (Fortaleza, CE) e O mago das megabolhas, de Marcelo Aristides de Lima (Guaíra, PR). No primeiro, a inspiração na farsa popular oportuniza um trabalho engenhoso de resgate através da memória. No segundo, a virtuose técnica do artista encantou crianças e adultos ao levar a cena ao lugar da quase magia.
O encerramento do festival, com Circo da Cuesta, da Cia. Beira Serra de Circo e Teatro (Botucatu, SP) foi excelente em todos os sentidos. Porque a apresentação conquistou amplamente a plateia, mas também porque o espetáculo sintetizou muitos dos aspectos do festival – na grande empatia gerada, na aderência do público e na reflexão poética em torno da identidade local.
Além da programação de espetáculos, que é o coração de todo festival, é preciso registrar a boa oferta de atividades formativas, com oficinas e workshops que foram da palhaçaria à crítica, da produção à maquiagem. É importante que um evento deste porte dedique-se ao fomento do olhar e também ao exercício dos meios expressivos, à afinação do ofício pelos artistas da cidade. Nesse capítulo, a reflexão também é alimento. Foi um privilégio, para quem acompanhou, poder ouvir os comentários do professor Alexandre Mate depois das apresentações. Sempre fundos e convidativos, estimulando a participação de todos e todas. Importante anotar também, quanto ao registro e memória do festival, a bonita exposição fotográfica de Jorge Etecheber, apresentada em todos os lugares em que os espetáculos aconteceram.

Estas notas não estariam completas sem apontar a produção azeitada que fez tudo acontecer. Neste capítulo, há de se elogiar as trabalhadoras e trabalhadores que estiveram na administração, gestão, técnica e apoio do festival: Fabio Amaral, Luciano Marcelo, Guilherme Delamura, Larissa Macena, Tiago Mariusso, Celma Ferreira, Cassio Inácio, Mah Almeida, Su Mayê, Henrique Nerys, Alexandre Manchini, Allan Imianovsky, Fabricio Ramos, Paulo Cesar da Silva, Ricardo Garutti, Antonio Carlos Ferreira, João Farinha. Sem esta retaguarda nada fluiria. Além do acordado, também foi muito relevante que a recepção e o trabalho junto a artistas e convidados tenha acontecido nas bases do afeto. Faz diferença.

Vocação da arte pública
A mistura de boas obras, sotaques diversos e promoção do acesso é o que a gente pode chamar de acerto curatorial, no sentido ampliado que envolve seleção dos espetáculos, produção e difusão do evento. O Janeiro Brasileiro da Comedia alcançou, assim, o que talvez sejam as melhores vocações da arte pública. O festival nos mostrou que a beleza, campo da estética, caminha ao lado do desejo de bem-estar para toda a cidade, campo da boa política. O teatro e, no caso, o riso, são direitos de todos. Quem esteve nas apresentações que aconteceram não só no Centro, mas também no Distrito de Talhado, no Solo Sagrado, no Jardim Soraia ou em Engenheiro Schmitt pôde verificar como isto aconteceu. Foram momentos únicos de fruição artística e de participação cidadã. É a melhor conjunção possível para uma arte que nasceu na ágora e a ela deve sempre retornar.

Kil Abreu
Crítico Teatral (São Paulo, SP)