Crueldade e reflexão no Brasil atual

Exercício crítico em torno do espetáculo “A Mulher Monstro”. Escrito por Manoel El Rassi

23 de janeiro de 2023

(Exercício crítico em torno do espetáculo “A Mulher Monstro”, da S.E.M. Companhia de Teatro, de Natal-RN. Escrito por Manoel El Rassi, no contexto da oficina O Riso Crítico, realizada no Janeiro Brasileiro da Comédia/2023)

Um tapa na cara da sociedade. Um show de horrores. O circo chegou na cidade neste Janeiro Brasileiro da Comédia. Com ele, aberrações puderam ser vistas na abertura do evento que em 2023 completa vinte anos de existência. O festival de São José de Rio Preto, tido como um dos maiores do gênero no país, ousou e provocou em muitas edições anteriores. E com este espetáculo de abertura mostrou que é sempre possível tirar o espectador de sua zona de conforto

Ao adentrar a sala somos transportados às antigas feiras onde aberrações eram colocadas em jaulas para a contemplação do ridículo, do diferente. Nos tornamos voyeurs de nossos maiores pesadelos, ficando cara a cara com eles. Como na famosa atração da Monga, a mulher gorila, presenciamos uma assustadora transformação. Na atração original trata-se de uma mulher que transforma-se, aos olhos do público, em gorila. No espetáculo o mesmo acontece, porém em processo inverso. Ou seja, a fera é apresentada como ser humano.

De dentro da jaula diversas facetas da sociedade são arremessadas à plateia, que as consome através do riso, sem ter muito tempo para digerir tudo o que lhe é revelado. A personagem, entre o humano e a fera, recorre a temas como educação, política, religião, xenofobia, racismo, sexualidade, gordofobia, para expor uma sociedade que está longe de ser utópica.

Inspirado no conto “Creme de Alface” de Caio Fernando Abreu, o espetáculo apresenta uma cenografia simples, que esconde, porém, inúmeras surpresas, responsáveis por ácidas e, às vezes, desesperadoras e angustiantes risadas. Trancafiada, a mulher expõe o lado repulsivo e perverso dos seres humanos. Mais especificamente o das pessoas “conservadoras e de bem”. Aliás, a escolha da personagem já foi, por si, proposital e assertiva, possibilitando um exímio trabalho de caricatura sobre indivíduos cujos princípios, tidos como exemplares, destroem os vínculos interpessoais.

O ator José Neto Barbosa assume com maestria o comando deste show social de horrores, mostrando estar preparado para qualquer imprevisto que aconteça. Por exemplo: as falhas que ocorreram no microfone transformaram-se em uma “bênção divina” ao ator, dando a oportunidade para que ele mostrasse seu potencial vocal nos moldes tradicionais do teatro, em que a capacidade de emitir a voz prende e conduz a atenção do público. Aliás, em meio a tantas transformações que acontecem na peça, vale notar a do próprio ator, um jovem que no palco dá vida a uma gigantesca mulher. Um monstro. Desta vez no bom sentido.

Iluminação e sonoplastia contribuem para que a representação alcance a crueldade desejada, muitas vezes deixando o espectador atordoado. Apesar de simples, sem refletores e canhões de luzes multicolores, os pequenos spots instalados nas laterais da estrutura recortam em quadros os momentos e variações de humor da personagem. A sonoplastia divide o roteiro em cenas, deixando claro ao espectador a estrutura do trabalho.

A dramaturgia, também criada pelo ator, vive em constante mutação, principalmente por se tratar de uma junção de situações e recortes de frases ditas por figuras públicas e anônimas. Ou seja, todo o espetáculo é a realidade atual da sociedade e aí está o ponto mais impactante da obra.

A peça tem um final apoteótico, reflexivo, colocando um espelho invisível diante de nossos olhos e provando que a crueldade pode nos arrebatar, resgatando a função catártica que o teatro sempre teve diante da sociedade. “A Mulher Monstro” é um espetáculo que deve ser visto por aqueles que possuem estômago forte e queiram compreender melhor o meio no qual estamos inseridos.

“A Mulher Monstro”
Espetáculo apresentado no Teatro Nelson Castro, em 21/01/2023, na programação do Janeiro Brasileiro da Comédia

Ficha Técnica:
Direção, dramaturgia, atuação, concepção visual e sonora: José Neto Barbosa
Iluminação, sonoplastia e coordenação de palco: Sérgio Gurgel Filho
Direção de fotografia de cena, fotos e sonoplastia: Mylena Sousa
Concepção de maquiagem e sonoplastia: Diógenes Luiz
Preparação vocal e de atuação: Isadora Gondim
Produção executiva e secretaria teatral: Alyson Oliveira
Hostess e assistência de produção: Bruna Morais
Produção artística: Augusto Freitas, Luciano Coutinho e Mychell Ferreira
Contribuição dramatúrgica: Fernanda Cunha
Coordenação de palco: Flávio Torres, David Costa e Juca Santos
Preparação de atuação: Jan Macedo
Costura de figurino: Iara Bezerra
Contribuição em concepção de figurino: João Marcelino
Fotos de divulgação: Brunno Martins, Bruno Soares, Tomaz Maranhão e Vitória Oliveira
Assessoria de comunicação e assistência de produção: Wender Gomes
Assessoria jurídica: Larissa Lima e Júlia Ribeiro

Foto: Marcos Morelli/Pref. Rio Preto