Educação promove debate com professores sobre a literatura como direito humano

Prefeitura investe na compra de livros de qualidade, valorizando a formação humana, diz especialista

30 de março de 2023

Pelo segundo dia consecutivo professores da rede municipal de ensino comparecem ao teatro Paulo Moura, no complexo da Swift para acompanhar, o encontro de educadores promovido pela Secretaria Municipal de Educação (SME) por meio da Diretoria Pedagógica. Na quarta-feira, 29, quem subiu ao palco com a palestra “Trouxe a Chave?: a literatura como direito humano e a formação sensível – crítica dos leitores” foi a doutora em Letras e especialista em literatura de infância, Juliana Pádua.

A educadora discursou sobre o quanto os textos literários oportunizam a percepção da complexidade do mundo por meio de um jogo lúdico com as linguagens. No encontro formativo, os professores puderam compreender a importância da literatura no desenvolvimento da sensibilidade e da criticidade leitoras, bem como as diversas possibilidades de exploração do objeto livro em ambiente escolar.

Mas será que o livro é apenas um recipiente de palavras e de imagens? Em vídeo enviado anteriormente aos professores, como um esquenta para a formação do período da tarde, foram propostas várias reflexões sobre as diferentes linguagens que compõem o livro literário, observando os potenciais estéticos das materialidades (acabamento gráfico, cor, dimensão, formato, tipografia, gramatura do papel, diagramação) na construção dos sentidos.

A discussão trouxe um novo olhar para o potencial da literatura de infância em sala de aula, que além de direito humano, possibilita o afinamento das emoções, o exercício da reflexão, o estímulo à criatividade, o apuramento do olhar estético, o cultivo do humor, a experimentação das camadas de sentido e a abertura para adentrar nos problemas do mundo. Em resumo, uma das chaves para se ensaiar no pensamento, na linguagem e na vida.

“Ao considerar os alunos como sujeitos de direitos, os professores devem garantir condições para que essas crianças e esses jovens sejam ouvidos em suas angústias e em seus medos sobre o mundo em que vivem, expondo de maneira sensível e crítica o que pensam”, explica consultora pedagógica Juliana Pádua. Segundo ela, a literatura é a porta de entrada neste sentido.

Entrevista com Juliana Pádua

Qual a importância do livro dentro das escolas?

Como uma militante do livro em suas mais diversas formas, acho que esse objeto é a primeira e mais importante tecnologia, indispensável na escola, porque ele não só armazena todo o conhecimento da história da humanidade, mas também, em especial no caso da literatura, oportuniza viver outras vidas, possibilitando ao leitor experienciar — enquanto fenômeno de linguagem — diferentes modos de existir. Então, é um encontro conosco, com os outros e com as complexidades do mundo. Ler um livro em sala de aula é mais do que decodificar palavras. É manusear também esse objeto, na condição de forma-significante, e observar as suas cores, sentir as suas texturas, explorar as suas dobras, a sua capa, a sua contracapa e os demais elementos constituintes, identificar os diálogos com outras obras, compreender o seu contexto de produção etc. Em síntese, o livro é muito importante na formação humana, pois convida para sentir e pensar.

É nesse contexto que a senhora fala da importância do livro como acolhimento?

Quando se pensa em acolhimento, é comum vir à nossa cabeça a escolha deste livro ou daquele livro para resolver ou responder ou amparar um momento de vulnerabilidade, como no caso bullying na escola. Assim, ficamos imaginando pretextos para uso de uma obra literária em circunstâncias específicas. Só que um livro-acolhimento não tem hora para ser lido e muito menos precisa explicar nada, trazendo uma mensagem final a ser aprendida e apreendida. Ele, por meio da sua construção poética e lúdica, muitas vezes abordando um assunto totalmente distante, pode acolher os nossos anseios, as nossas dores e as nossas perguntas ao nos convidar para espiar melhor e prosear sobre tudo aquilo. “Flicts”, do Ziraldo (Flicts, personagem que dá nome ao livro ilustrado, é uma cor muito diferente de todas as outras e, por isso, não se encaixa em nada), lançado em 1969 e ainda bastante atual, nos propõe um exercício de autoconhecimento. Por meio das cores e da relação palavra-imagem na página, o leitor acompanha a jornada de Flicts e junto com essa cor desencaixada vai refletindo sobre respeito, solidão, pertencimento, autoaceitação, subjetividade e por aí vai. É uma obra literária que não diz explicitamente “Não faça bullying! Isso não é legal!”. Ela, por meio da ficção, nos leva a experienciar de forma dialética os problemas da vida, destacando que todo mundo tem um lado único e isso é grandioso. Então, a literatura como acolhimento não é só uma questão temática, mas também um gesto de escolha consciente de livros que garantam continuamente essa formação humana, essa experimentação dos variados modos de pensar e de sentir, essa diversidade de perspectivas que levam a reelaboração dos pensamentos e dos sentimentos, esse ensaio com/nas/pelas linguagens, essa brincadeira de imaginar outros mundos, essa multiplicidade de questionamentos que aparecerem a partir da leitura sem a necessidade de trazer uma resposta cabal. Isso que é o mais importante!

Qual a importância deste curso de formação promovido pela SME?

*Esta palestra é só um cheirinho de tudo que poderíamos pensar quanto à grandiosidade que é a literatura, que é a leitura, que é o livro na escola. Ela foi pensada para trazer um itinerário formativo, que a partir das reflexões teóricas de Antonio Candido, reconhece essa literatura como um direito humano, compreendendo-a como uma necessidade vital para nos organizarmos neste caos que é a vida, para nos possibilitar existir e resistir com dignidade no dia a dia, para nos oportunizar a elaboração e a reelaboração dos pensamentos complexos, para nos convidar ao desenvolvimento da sensibilidade e da percepção. Por isso, no primeiro momento, é feita a apresentação desse conceito, dessa necessidade e desse direito que precisa ser garantido. A partir daí, trago uns exemplos de livros que irão compor o acervo da Prefeitura de Rio Preto com o objetivo de observarmos o potencial deles para abertura de ricas conversas apreciativas e para abertura de experimentações das mais diversas. Dessa forma, verificamos que um mesmo livro pode ser lido e relido várias vezes, não só como prática da aula de Língua Portuguesa, ou voltado para esse universo das letras, mas como um momento que atravessa todo o processo de formação humana dentro da educação básica. O município investiu dinheiro na compra de um acervo super interessante e de grande qualidade literária. Acredito que os professores terão muitas possibilidades de fomentar uma educação literária transformadora.

A senhora estudou mais de 500 obras no período de 2000 a 2020?

Bem mais de 500. Se eu não estiver enganada, foram mais de 700 obras de potencial recepção infantil. Fiz um levantamento para minha tese de doutorado reconhecendo tudo o que foi possível da produção literária do século 21, mas confesso que fui um pouquinho antes dos anos 2000 e passei de 2020, quando iniciava e terminava o meu recorte. A ideia era reconhecer as formas de expressão dessa literatura tão complexa e tão diversa do que a gente leu enquanto leitores lá trás. Observei, ao longo da minha pesquisa, como esses livros convidam ao desenvolvimento de uma percepção afinada. Aí, dentro desse cenário, eu buscava obras que convidam à participação ativa do leitor e reconhecia que tipos de interações eram essas, que vão do processo imaginativo, passam pela experimentação da fisicalidade do próprio objeto livro até chegar naqueles formatos híbridos com dispositivos tecnológicos acoplados.

Durante a palestra, como foi a reação dos professores da rede municipal de ensino?

Acredito que a receptividade dos professores foi muito boa. Eu sempre penso que, quando vou falar sobre direito à literatura, estou chovendo no molhado, mas na hora que apresento os livros, como foi a minha estratégia, observo um encantamento com as possibilidades de explorá-los na escola. Isso se dá porque as obras reverberam no que há de mais humano em todos nós, a capacidade de perceber, sentir, pensar e se expressar. Acho que esse breve encontro aqueceu o coração dos professores, porque o meu sai daqui bem quentinho.

Texto: Cristiano Furquim/Secretaria de Educação
Fotos: Secretaria de Educação