Fragmentos de ódio a plenos pulmões

Exercício crítico em torno do espetáculo “A Mulher Monstro”. Escrito por Lucas Horas

23 de janeiro de 2023

(Exercício crítico em torno do espetáculo “A Mulher Monstro”, da S.E.M. Companhia de Teatro, de Natal-RN. Escrito por Lucas Horas, no contexto da oficina O Riso Crítico, realizada no Janeiro Brasileiro da Comédia/2023)

O espetáculo escolhido para abrir esta edição do Janeiro Brasileiro da Comédia de São José do Rio Preto foi “A mulher monstro”, solo de José Neto Barbosa, artista de Natal-RN. Além de atuar o artista assina outras funções criativas da montagem, como dramaturgia, direção, concepção visual e sonora, assumindo o protagonismo de produção e execução do projeto. A obra repercute a proposta curatorial desta edição do festival: “divertir para comunicar”.

“A quem quiser desistir de ver a peça, essa é a hora”. Posto como uma das primeiras frases proferidas no começo do espetáculo, o alerta traz consigo a intenção de antecipar ao público o peso do conteúdo tratado e os meios usados para trabalhar a temática da peça. Estes elementos, juntos, atravessarão quem assiste. Ficaremos ora comovidos, ora enfurecidos, ora nauseados, ora incomodados. Mas de maneira alguma ilesos da reflexão proposta pelas denúncias reveladas na fala de uma personagem que representa com nitidez e detalhes um Brasil atual, na voz dos seus opressores.

No palco, uma jaula. Dentro dela, uma mulher. Em seu pescoço o colar com um sem-número de pérolas. A imagem, diretamente relacionada ao zoológico, nos remete ao que é perigoso, ao que nos pode agredir, machucar, nos violentar e colocar nossa vida em risco. É nessa confluência que a imagem do animal perigoso se amalgama à personagem, letal em seu discurso excludente, violento e odioso. O fato de a criação do ator apresentar-se como uma drag queen é representativo. Permite que os discursos que virão ao longo da narrativa ganhem a forma desejada por meio desta linguagem que lida com a caricatura.

A mulher tira de sua bolsa de grife um frasco de cloroquina e uma bandeira do Brasil. Identifica-se assim, neste momento, o discurso no qual a “Mulher monstro” está imersa: o discurso relacionado ao ideário de uma classe rica, branca, hétero, cis, conservadora e patriota. A plenos pulmões ela deixará evidente a que veio e em que preconceitos e falsas informações está apoiada.

Ao redor da jaula há diversas lâmpadas que acendem e apagam de acordo com a voz que naquele momento está presente. Cada voz conta uma história, dessas vividas pela burguesia branca. Situações como o descaso com a empregada doméstica, a frustração por se ter um filho gay, a traição do marido que mantém como amante uma mulher negra. São diversos relatos apresentados em uma narrativa fragmentada. Vozes diretamente vindas da vida e do mundo real. Vozes de discursos preconceituosos presentes em almoços de família, cultos religiosos, escolas. Um conteúdo triste, de que a personagem é a porta-voz no palco.

Em um dos momentos finais, a mulher fica sentada, olhando para a plateia. Assistimos à fera que agora parece estar com medo por haver tantos olhos fitando-a. Por um instante poderíamos pensar que está arrependida. Porém, ainda que peça desculpas, logo reinicia a destilar o ódio. Na sequência, relata sobre como espancou uma criança que lhe havia pedido dinheiro e de como, após cometer o crime, entra em um cinema e vive os prazeres de que tanto gosta.

Trata-se de alguém que nunca se importou com gays, com assalariados, com nordestinos, com indígenas, com gordos, com crianças pobres. E agora, quem se importaria com ela? Nesse momento, um áudio alto silencia suas palavras. Em uma gestualidade histriônica, revela-se à beira da insanidade. É quando, em um paralelo à poesia de Brecht, poderemos dizer: quem não se preocupou com outros outrora não terá ninguém se importando consigo agora.

“A Mulher Monstro”
Espetáculo apresentado no Teatro Nelson Castro, em 21/01/2023, na programação do Janeiro Brasileiro da Comédia
Ficha Técnica:
S.E.M Cia de Teatro (Sentimento, Estéticas e Movimento) . De Natal –RN
Duração: 100 minutos
Faixa etária: 14 anos
Direção, Dramaturgia, Atuação, Concepção Visual e Sonora: José Neto Barbosa
Iluminação, Sonopalastia e coordenação de palco: Sérgio Gurgel Filho
Direção de fotografia de Cena, Fotos e Sonoplastia: Mylena Sousa
Concepção de Maquiagem e Sonoplastia: Diógenes Luiz
Preparação Vocal e de atuação: Isadora Gondim
Produção Executiva e Sec. Teatral: Alyson Oliveira
Hostess e Assistência de Produção: Bruna Morais
Produção Artística: Augusto Freitas, Luciano Coutinho e Mychell Ferreira

Foto: Marcos Morelli/Pref. Rio Preto