Incrível Teimosa, palhaça maestrina

Exercício crítico em torno do espetáculo “Que festa é essa, criatura?”. Escrito por Kil Abreu

26 de janeiro de 2023

No bate-papo que aconteceu após o espetáculo, o professor Alexandre Mate chamou de “maestrina” a atriz Daniele Pezenti (palhaça Incrível Teimosa). Não é uma qualificação fortuita. É que, de fato, a intervenção de rua entregue à plateia que lotou a Praça Allan Kardec, no Jardim Soraia, foi regida por ela. A ideia de regência, no caso, não diz respeito apenas a um detalhe da ação. Diz também sobre como a intérprete mantém em pleno funcionamento todos os recursos de palhaçaria mobilizados e, em extensão, como conduz o público com uma presença de grande qualidade. Aderidos à representação, aceitamos ser conduzidos para cá, para lá, assim ou assado, e na maior alegria. Maestrina, pois.

Alguém pode argumentar que isto é o esperado na arte do palhaço. É verdade. Talvez seja mesmo o ponto de chegada de qualquer atuação nessa linguagem em que o viço da teatralidade depende fundamente da triangulação com a audiência. No entanto, quando dizemos “maestrina” também queremos dizer que no espetáculo este trabalho alcança um resultado de excelência, pela reverberação cômica em si como também pelo alto grau de empatia na relação com a plateia.

Os diversos procedimentos que Daniele usa para chegar neste estado de congraçamento grupal através do riso estão em boa parte já inscritos na tradição da palhaçaria. Por exemplo, o jogo a partir de ações que se anunciam, como uma piada que já conhecemos e que ainda assim ganha, com ela, uma maneira renovada de existir. O mesmo vale para o velho truque de mágica, ou o número com malabares, que embora não tragam nenhuma novidade quanto à apresentação, nos chegam com o frescor das coisas vivas e pulsantes.

Se por um lado os números estão inscritos, por outro há algo precioso, que não está dado e só existe por causa do sofisticado trabalho feito pela atriz no percurso que vai da ação ao sentido cômico propriamente dito. Do apelo físico ao efeito, seguimos rindo e aceitando esta reiterada afirmação da alegria diante da vida não porque ela traz – no chiste, no erro construído, no humor que nasce do ridículo do corpo – algo totalmente fora da ordem. Seguimos rindo porque, na forma como essas coisas nos chegam, a palhaça parece nos arrastar para a experiência de um estado de espírito vital diante do mundo que é, sim, ao menos naquele momento, algo inaugural e irrepetível.

Quanto à dramaturgia, o que acontece em cena não segue exatamente – ou ao menos não rigorosamente – o que diz a sinopse do espetáculo: a história sobre uma pessoa rica que contrata a Incrível Teimosa para animar uma festa. Que o mote não esteja desenvolvido não é problema. A espontaneidade dos números, amarrada pelo improviso atento às circunstâncias, sustenta-se sem necessidade de um fio narrativo que o justifique. Mais fundamental é que de qualquer maneira as situações estejam orientadas por um olhar não genérico. O ponto de vista da encenação é o de uma artista mulher e está bem afirmado.

Deste eixo decorre todo o resto. Por exemplo, a vocação para as ruas, em que as coisas são o que são e o acaso tem tanta importância quanto o roteiro pré-definido. O acaso não só tem peso como por vezes é motivo para alguns dos melhores momentos do espetáculo. Apropriar-se corretamente do que foge ao plano é algo que também não está dado, depende do talento do artista para transformar o acidental em essencial. E é isso o que Daniele faz neste espetáculo. Nada lhe escapa: uma criança mais ativa que o esperado na plateia, a timidez de um homem chamado para compartilhar a cena, a eventual reação do público fora do planejado, os gases estrondosos de um cavalo próximo a um homem, tornado piada – tudo é assimilado a favor da cena. Também por isso confiamos nela. Depois que percebemos que estamos diante de uma artista com essa percepção engenhosa, cresce em nós a vontade de colaboração. Porque aquilo nos vitaliza e talvez movimente de alguma maneira a melhor parte de nós.

Assim, em um país hoje fraturado gravemente em tantos desacordos, o espetáculo de Daniele Pezenti constrói de um modo próprio um momento muito poderoso de re-união. Não importa, por enquanto, que através dele não se resolva a cisão política e as dores do mundo. Mas importa muito que a partir dali possamos projetar, por quarenta minutos que seja, um lugar-comum em que é permitido conviver em torno do mais delicado e saboroso da vida.

Que festa é essa, criatura?
Espetáculo apresentado na Praça Allan Kardec (Núcleo de Artes Roberto Farath) – Jardim Soraia em 24/01/2023, na programação do Janeiro Brasileiro da Comédia

Ficha Técnica:
Palhaça Incrível Teimosa: Daniele Pezenti
Direção/Maquiagem/Cenografia: Daniele Pezenti
Sonoplastia: Renata Ichisato
Assessoria de Cena: Adriano Gouvella
Figurino: Sueli Pezenti Dias
Fotografia: Valéria Felix
Técnica de Som: Renata Ichisato
Vídeo: Luis Mioto
Produção: Renata Ichisato

Foto: Marcos Morelli/Pref. Rio Preto