Sobre máscaras, mentiras e razão

Exercício crítico em torno do espetáculo A Fabulosa Tenda dos “Charlatães”. Escrito por Kil Abreu.

30 de janeiro de 2023

O grupo Desembargadores do Furgão apresentou no Janeiro Brasileiro da Comédia o espetáculo A fabulosa tenda dos “charlatães”. Sob a direção artística de Gabriel Borenstein o coletivo paulistano mostrou no festival o resultado de sua investigação em torno das possibilidades do teatro de máscaras, especialmente as máscaras balinesas. Amanda Schmitz, Ana Pessoa e Marcelo Moraes (em cena) o fizeram com ótimo resultado.

A estrutura da dramaturgia é episódica, em quadros, e o esquema é relativamente simples: uma trupe de “charlatães” chega à cidade e apresenta a sua versão para números vindos da tradição circense e afins. São truques de ilusionismo e variantes que, entre uma e outra surpresa, não escondem os seus fundamentos mequetrefes. Saborosas trapaças que denunciam a si mesmas. Mas não ficamos decepcionados. É que o riso vem justo do descompasso entre a apresentação pomposa dos números em contraste com a revelação do sempre maldisfarçado engodo.

No relato sobre o processo de criação, depois da apresentação na quadra do Ceu das Artes Aristides dos Santos, o grupo explicou alguns aspectos do processo de montagem, desde os materiais utilizados na confecção das peças, passando pela pesquisa para o trabalho físico e os rituais próprios para a apropriação, pelo elenco, das máscaras. Foi uma boa aula a respeito da formalização de um espetáculo, sobre como os elementos materiais se estruturam em narrativa. Dito de outra maneira, sobre como se montou o brinquedo, nos termos propostos.

Naturalmente, tudo isso é fundamental para olharmos o espetáculo em sintonia fina, compreendendo melhor como ele foi feito e em que direções o trabalho da equipe empenhou-se. No entanto, a montagem não exige de nós elementos prévios, conhecimentos especializados, para frui-la. Por um lado só podemos alcançar e sentir a encenação porque os elementos formais estão lá, bem articulados. É através daquele arranjo, organizado pelo grupo e posto a funcionar em boa performance, que acontece o efeito de empatia entre nós e a cena. Mas, por outro, felizmente o espetáculo é democrático o suficiente a ponto de manter a porta da comunicação sempre aberta. A plateia presente na quadra da escola em que a apresentação ocorreu – em um dos bairros mais à periferia de Rio Preto – manifestou com entusiasmo sua aprovação.

Em uma leitura livre talvez possamos dizer, sem sacrifício de outras, menos intencionadas, que a medida política mais evidente e mais interessante do espetáculo está em trabalhar com a linguagem da máscara ao mesmo tempo em que a tira. Fazer a mágica acontecer e em seguida desnudar os modos, os bastidores, os segredos do truque, é algo essencial ao momento em que vivemos. Um momento em que parte da sociedade brasileira abraça a mentira e a má-fé com fervor religioso. Por isso é útil que o teatro, com seus meios próprios, mostre a ciência das coisas. É urgente que valorizemos o prazer que vem da razão. É importante que a cena ajude a des-mascarar, enfim, a ideologia corrente. Que isso seja feito usando o próprio tema da ilusão como instrumento é um bonito achado dialético, compartilhado conosco na maior alegria pelos Desembargadores do Furgão.

A Fabulosa Tenda dos “Charlatães”
Espetáculo apresentado no CEU das Artes Aristides dos Santos, São José do Rio Preto, em 27 de Janeiro/2023. Na programação do Janeiro Brasileiro da Comédia

Ficha Técnica
Orientação Artística: Gabriel Bodstein
Elenco: Amanda Schmitz, Ana Pessoa, Marcelo Moraes
Contrarregragem e Operação De Boneco: Mariana Rhormens
Dramaturgia: Grupo Desembargadores Do Furgão
Direção Musical: Max Huszar E João Paulo Nascimento
Operação de Trilha Sonora: Max Huszar
Cenografia e Figurino: Maria Zuquim
Confecção de Figurino: Rita De Cássia Martins Freitas
Confecção de Boneco: Ana Pessoa
Objetos Cênicos: Roselene Scarpelli
Produção Executiva: Maira M Produção
Produção Geral: Grupo Desembargadores Do Furgão