Um Circo comunitário

Exercício crítico em torno do espetáculo Circo da Cuesta. Escrito por Kil Abreu

3 de fevereiro de 2023

Exercício crítico em torno do espetáculo Circo da Cuesta, com a Cia. Beira Serra de Circo e Teatro, de Botucatu – SP. Escrito por Kil Abreu, no contexto da oficina O Riso Crítico, realizada no Janeiro Brasileiro da Comédia/2023

A Cia. Beira Serra de Circo e Teatro, de Botucatu – SP, encerrou o Janeiro Brasileiro da Comédia em grande estilo. Circo da Cuesta, o espetáculo apresentado, fez uma engenhosa inversão de expectativas e entregou à plateia um dos melhores espetáculos do Festival. Não é que não esperássemos uma boa montagem. É que quando se diz “inversão’ estamos pensando já nos termos da dramaturgia e seu jogo de surpreender anunciando uma coisa e formalizando outra em cena.
Explicamos: trata-se da história dos moradores e moradoras de um vilarejo, Nossa Senhora das Dores de Cima da Serra. A ação acontece às vésperas da quermesse local e da esperada chegada do circo, que irá apresentar-se na cidade. Mas o circo “de verdade” fica preso no caminho, restando a todos apenas lamentar que as atrações tenham sido perdidas. Mas não. A primeira virada dramatúrgica está na construção de uma nova narrativa dentro desta expectativa frustrada. São os próprios moradores do lugar que, vivendo o estado de espera, “contam-se a si”. A contação, por sua vez, não é apenas retórica. O grupo lança mão a todos os possíveis recursos que o circo esperado exibiria, enquanto costura no palco, através daquelas técnicas, as histórias pessoais e os detalhes da vida comunitária.
Assim, entre números que vão do cômico ao lírico, passamos a conhecer a caipirês que é pura empatia, e seus viventes e dilemas. Há uma tia dada à cachaça, um coração de pescador, um casal de velhos habitantes. Personas que aparecem entre gags, entradas circenses e números no tecido, na corda, na argola ou em meio à exibição de malabares feitos com pedaços de madeira crua.

A segunda inversão tem como princípio a oposição entre a anunciada “vida simples” das personagens e a forma sofisticada, arriscada, exigente com que a montagem se constrói. A justaposição entre o tema da vida bucólica interiorana e as soluções técnicas que o espetáculo dispõe para representá-la é um contraste de grande efeito. E gera um sentido fundo, subliminar, se pensarmos que o grupo mesmo é formado por artistas do interior – de onde, nos enquadramentos usuais da ideologia, espera-se quase sempre que correspondam a um imaginário já pronto, pautado em uma sociabilidade mais “pura” que nem sempre combina com a sofisticação dos meios empregados em cena. Uma das melhores leituras que o espetáculo nos oferece talvez tenha a ver com isso: a simplicidade e o sentimento que ela contempla é complexa e sofisticada, não se deixa enquadrar.

Para alcançar esses duplos a Cia. Beira da Serra não faz nenhum tipo de sociologia em cena, senão aquela que pode ser intuída da própria fatura poética. Tudo está assimilado na forma como os números acontecem, articulados à dramaturgia. Esta, por sua vez, não dispensa altas doses de ironia. Por exemplo, através da música, de onde vêm tanto a moldura sonora que ampara a vida coletiva como as ironias que a criticam.

O espetáculo, bem sustentado, foi um ótimo encerramento do JBC. Em certa medida sintetizou uma série de características que marcaram esta edição do festival: o empenho técnico, a boa qualidade cênica, a pesquisa em caminhos promissores para o cômico e a empatia mútua entre palco e plateia. Assim, a apresentação a que assistimos honrou o apagar das luzes da Mostra. Foram dias de congraçamento pelo riso, em um espírito de partilha que a montagem também difundiu bonitamente.
Circo da Cuesta
Espetáculo apresentado no Teatro do SESI de São José do Rio Preto, em 30 de Janeiro/2023. Na programação do Janeiro Brasileiro da Comédia

Ficha Técnica
Direção: Ronaldo Aguiar
Dramaturgia: Fernando Vasques e MiMi Tortorella
Elenco: Dael Vasques, Fernando Augusto, Fernando Vasques, Guilherme
Gasperine, Marina Lino, MiMi Tortorella e Willian Novak
Direção Musical: Dael Vasques e Fernando Augusto
Culinarista: Tereza Telles
Iluminador: Osvaldo Gazotti
Cenografia e figurino: Laura Françozo
Cenotécnico: Gabriel Lino
Designer Gráfico: Otávio Henrique
Fotógrafo e Vídeo Maker: Baga Defente
Assessoria de Comunicação e Imprensa: Sérgio Viana